não sei qual é o leste
no dia vinte e três de abril de 2021 nós solicitamos a 180 pessoas que enviassem, via whatsapp, registros do seu dia. enviamos, de hora em hora, 24 pedidos como “fotografe o barulho da cidade”, “descreva como sua cidade moldou quem você é” e “fotografe o leste”. 137 participantes, dos 180 que se inscreveram na chamada aberta, enviaram fotos, textos e áudios – que totalizaram 1.441 itens.
participantes de córrego do bom jesus, recife, londrina, florianópolis, queluz, osasco, mauá, carmo da mata e dezenas de outras cidades de 15 estados brasileiros passaram o dia compartilhando conosco fotos e relatos de seu dia, abrindo a porta de suas casas e dividindo conosco alimentos, objetos, sons, reflexões e memórias que preencheram aquela sexta-feira qualquer.
nosso convívio em sociedade é moldado, em grande parte, pelas nossas relações com as outras pessoas e pelas semelhanças e diferenças nos modos de estar no mundo. as cidades simultaneamente refletem e fabricam esse amálgama, e enviar o mesmo pedido para dezenas de pessoas nos permitiu conhecer diferentes localidades e ver contextos muito singulares, ao mesmo tempo que revelou fortes semelhanças em muitos registros.
uma das intenções do projeto era incentivar as pessoas a experimentarem momentos de presença naquele dia, através de pedidos mais subjetivos como observar e refletir sobre o que é o lado de fora; mais pragmáticos como listar todos os sons que estivessem ouvindo naquele momento; ou mais reflexivos como o pedido para que compartilhassem sua memória mais afetiva que a cidade proporcionou. em sintonia com o contexto contemporâneo, onde o estímulo proporcionado pelas diferentes tecnologias é constante e instantâneo, lançamos mão do aparelho que dá acesso a todas essa informações e estímulos e através de um aplicativo instalado em boa parte dos celulares sugerimos momentos de pausa, contemplação e percepção do espaço em que vivemos.
outro desejo era estimular as pessoas a (re)descobrirem ou se atentarem a ocorrências banais e corriqueiras que estão fora das telas. com a possibilidade de adentrar lares isolados de forma íntima e deliberadamente partilhada, surgiu a curiosidade para ver como seriam as diferentes caligrafias dos participantes (por isso pedimos que escrevessem à mão o nome do próprio bairro) ou se saberiam onde o sol se põe em relação à própria residência.
o título desse texto é a resposta de uma participante que nos levantou a dúvida sobre quais informações estamos priorizando saber, enquanto sociedade, em detrimento de outras. também joga luz ao fato de relutarmos a consumir ou realizar atividades que não geram resultados instantâneos, como a atualização da página da rede social com novas informações a cada clique. talvez seja frutífero sairmos do automático e refletirmos sobre a relevância de conhecer os pontos cardeais, mesmo que carreguemos o mapa do mundo inteiro em nosso bolso.
por mais que o intuito do trabalho não fosse refletir sobre o contexto de isolamento social a que fomos arrastados desde março de 2020, quando a pandemia do coronavírus assolou o mundo, as imagens e textos registram o quanto nossa dinâmica foi alterada – ao menos dentro do recorte das pessoas que participaram do projeto, que representam apenas uma fração da sociedade. ficou evidente como a relação com a rotina movimentada das cidades mudou; nossas antenas continuam ligadas, mas os estímulos que recebemos da vida urbana se reduziram ao que chega até nós dentro de nossas residências.
provavelmente em outro contexto as fotografias de alimentos (solicitadas ao meio-dia) revelariam restaurantes por quilo, marmitas ou outras formas de se alimentar fora de casa; as fotografias do chão, que pedimos às 18h30, possivelmente mostrariam calçadas, o piso do metrô ou do ônibus. no lugar dessas ocorrências, vimos muitos alimentos em fruteiras e diversos pisos de salas ou cozinhas residenciais. quando pedimos que desenhassem todos os trajetos feitos no dia, o volume de plantas arquitetônicas foi bem maior do que o de mapas das cidades. também saltou aos olhos como todos os registros parecem muito solitários: sem pessoas ao fundo, por perto, de passagem, à espera, enfim, compondo a cena mesmo que de forma indireta.
muitos de nós estamos acostumados a registrar nosso cotidiano: o que comemos, com quem nos encontramos, quais músicas ouvimos. isso proporciona uma sensação de pertencimento ao mesmo tempo que demonstra um interesse sensível na vizinhança – a da casa ao lado ou a que vive a centenas de quilômetros de distância de nós. além disso, ao compartilharmos nossa rotina com os outros é possível projetarmos aspectos que queremos reforçar sobre nossa própria personalidade.
ao nos debruçarmos nos registros recebidos, encontramos muitas histórias bonitas e informações curiosas. muitas imagens que pareciam dípticos, não fosse o fato de serem feitas por pessoas diferentes sem que estivessem vendo o par formado pela imagem de outro participante. esse site é um repositório com todos os registros recebidos.
bom passeio!